sábado, 3 de novembro de 2012

Carta aberta ao amigo Camilo Gomes Jr acerca da anarquia







Caro Camilo (Camilo Gomes Jr é blogueiro e seu blog é a "Voz da espécie"   (http://avozdaespecie.wordpress.com/  ) sei que você tem dúvidas sobre a funcionalidade do anarquismo, isso é bom porque nos permite o debate sobre este assunto.

Segundo suas dúvidas, dúvidas louváveis:

Quanto à questão do anarquismo, acho que o maior desafio para seu estabelecimento é justamente superar o desenho genético de nossos cérebros (cujo funcionamento produz nossas mentes), em especial no que tange àqueles traços de base mais instintiva ou de moral primitiva que antropólogos já registraram distribuídas em todas as sociedades humanas, nas mais diversas culturas: os chamados “universais humanos”. Acho difícil superá-los ou reduzi-los sem a presença coercitiva de alguma autoridade central (um Estado: aqui, entendido como qualquer poder centralizado numa comunidade, seja um Estado organizado como o democrático de direito contemporâneo, seja um conselho de sábios, uma cúpula de partido, um rei, um parlamento, uma liderança tribal ou um patriarcado de clã). 

Parece-me que você parte da premissa de Hobbes: "Homo homini lupus", "o homem é o lobo de outro homem", por isso é preciso ter uma autoridade externa para que o mundo não caia "na guerra de todos contra todos". 

Somos levados a crer que o Estado é importante, que ele é quase divino e que existe desde que o ser humano surgiu ou que é um mal menor. Sem Estado não haveria leis, não haveria organização e todos seriam individualistas tais como os homens-lobos de Hobbes. Infelizmente é isso que nos ensinam nas escolas, a história é falsificada com objetivo de querermos sempre uma autoridade, um governo. Muita gente acha que a anarquia é uma utopia e que nunca vai existir essa idade do ouro, logo a presença do Estado se faz necessária.

Acontece que tivemos sim, essa idade de ouro e foi na Idade Média que a maioria das pessoas por ignorância chama de Idade das Trevas. Foi nessa época que surgiram as comunas e as guildas que se guiavam por leis consuetudinárias ao invés de se guiar pelo direito romano. Os homens nessa época se associavam livremente, criavam fraternidades e federações.

Sobre as guildas e fraternidades diz Kropotkin: "Sob a designação de guildas, de amizades, de fraternidades, de universidades etc., pululavam as uniões para a defesa mútua; para a ofensa de vinganças recebidas por qualquer membro da união; para se solidarizarem com todos os atos que fossem levados a efeito - substituindo, assim, a estúpida vingança do olho por olho pela compensação, seguida da aceitação pura e simples do agressor na "fraternidade";para o aprendizado e exercício das profissões; para o socorro em caso de doença; para a defesa do território; para impedir as pretensões da autoridade nascente; para o comércio; para a prática da "boa vizinhança"; para a propaganda... para tudo, enfim, que o europeu educado pela Roma dos Césares e dos papas, solicita hoje ao Estado". [1]

Durante a Idade Média não existia o Estado, o Estado tal como é hoje é uma invenção moderna e não é nada daquilo que diz Hobbes, que é preciso um poder centralizador para que o homem não caia na guerra de todos contra todos.

Segundo este mesmo autor: "...Os bárbaros deixavam-se escravizar, trabalhando para os amos; mas seu espírito de ação livre e de livre entendimento não se tinha corrompido. apesar de tudo, as suas fraternidades tinham vida; e as suas cruzadas não fizeram senão despertá-las e desenvolvê-las no Ocidente. 
Então, e com grande espanto da Europa, eclodiu, nos séculos XI  e XII,  a revolução das comunas, revolução preparada desde longa data pelo espírito federativo, espírito este que saiu da união das fraternidades ajuramentadas com a comuna rural". [2]

Como bem se vê a anarquia, a acracia ou qualquer nome que se dê a isso não é uma utopia, uma ilusão de mentes românticas ou degeneradas como querem os defensores do Estado sejam conservadores sejam esquerdistas, sejam de centro. Um governo imposto, uma auto--gestão já existiu mas é claro que nossos historiadores oficiais não têm interesse em mencionar, daí que nossas gerações "educadas" nessa história se apegam ao Estado como aquela instituição que garante seus direitos e que o assiste em suas necessidades. E   diante de tal ocultação ou adulteração da história os anarquistas são odiados e insultados pelos estatólatras que não se deram ao trabalho de estudar os teóricos anarquistas.

De acordo com Kropotkin: "Em algumas regiões, o desenvolvimento destas comunas foi natural. Em outras - e foi a regra geral para a Europa ocidental - o seu desenvolvimento foi o resultado de uma revolução.
Quando os habitantes de um determinado burgo sentiam-se suficientemente protegidos por suas muralhas, formavam uma "conjuração". Voluntária e mutuamente faziam o juramento de abandonar, esquecer, mesmo, todas as questões provenientes de insultos, de lutas ou de ferimentos; e juravam também que, no futuro, não mais recorreriam, nas desavenças que porventura houvesse, a outro juiz que não fosse o síndico, ou os síndicos nomeados por eles. Em cada guilda de profissão ou de boa vizinhança, em cada fraternidade ajuramentada, este procedimento foi praticado durante um largo período de anos. E nas comunas rurais, antes do bispo ou do reizinho terem introduzido nelas para impor-se como juízes, observava-se o mesmo costume.
Mais tarde, as aldeias e as paróquias que constituíam o burgo, assim como todas as guildas ou fraternidades que se desenvolveram no seu seio, consideravam-se como uma única amizade, não só para nomear os seus juízes, como para jurar a união persistente entre todos os grupos.
Para isso redigia-se imediatamente uma carta que era aceita por unanimidade. Em caso de necessidade mandava-se copiar essa carta (espécie de constituição de que se conhecem, hoje,  centenas e centenas de exemplares) de qualquer comuna vizinha; e, assim, ficava constituída a nova comuna. Ao bispo, ou ao príncipe, que, até aquela data, tinha sido, em maior ou menor grau, o dono, o senhor, não lhe restava outro recurso senão o de aceitar o fato consumado, ou combater, por meio das armas, a nova conjuração. muitas vezes o rei, quer dizer, o príncipe que procurava dar-se ares  de superioridade sobre os outros príncipes, mas cujo cofre estava vazio, "outorgava" a carta mediante uma certa quantia. Deste modo renunciavaà imposição do seu jugo à comunidade, assumindo, depois, uma pose altiva perante os outros senhores feudais. Mas isto não era, de maneira alguma, a regra geral: centenas e centenas de comunas viviam sem outra sanção que não fosse a sua vontade, as suas muralhas e as suas lanças!". [3]

Isso porque o desafio de se conseguir, sem imposição da autoridade, a homogeneidade comportamental: o respeito para com o outro e para com o que é do outro, a compreensão da partilha necessária, de que não se pode matar, roubar, estuprar etc., ao que parece a mim e a muitos estudiosos cujos trabalhos conheço, dependeria de a mente humana ser uma tábula rasa lockiana, que fosse reprogramada numa espécie de lavagem cerebral coletiva que produzisse mentes funcionando da mesma maneira, predispostas a emitir os mesmos juízos de valor sobre as mesmas coisas. Ou seja, é basicamente a grande falha do “princípio da não agressão” dos anarcocapitalistas.

Na verdade, não, caro Camilo, somos anarquistas por natureza, muitas e muitas vezes entre amigos ajudamos e somos ajudados sem pedir algo em troca, sem inserir ideias de obrigatoriedade. Então, diante das evidências de que o ser humano é o lobo do outro homem, pensamos ser necessário um Estado policial e repressor. Agora, é fato que os detentores do poder não querem que o povo saiba a verdade, não é interessante saber que as comunas, guildas e fraternidades funcionavam sem a presença do Estado. O Estado precisa sobreviver através do medo das pessoas que se isolam e buscam conforto nessa entidade abstrata chamada Estado.

Infelizmente essas experiências começaram a acabar no século XVI com o fortalecimento dos comerciantes e apoio destes aos reis e também porque as fraternidades se emanciparam mas esqueceram de emancipar seus irmãos camponeses e esses se uniram aos senhores feudais e reis para enfraquecer e destruir as guildas e fraternidades e isso se deu simplesmente por causa de seu apoio aos reis e senhores feudais. Esta é a tese defendida por Kropotkin em seu livro: O Estado e seu papel histórico. Quanto a essa opinião do Steven Pinker penso que não se sustenta pois como já diziam os positivistas: contra fatos não há argumentos. É evidente que crimes continuarão existindo e mesmo injustiças mas numa escala bem menor, pois o que a sociedade procura é a justiça enquanto nossa sociedade só lhes dá a legalidade.

Notas: Todas as referências feitas à Kropotkin foram retiradas do livro "O Estado e seu papel histórico".